O incêndio do Museu Nacional, tragédia ocorrida no último dia 2, queimou 90% do acervo do mais antigo centro de ciência do Brasil. Em uma noite, o país perdeu algumas das mais importantes peças de sua história natural. Se o triste ocorrido chocou a nação, também abriu os olhos para a memória e a cultura brasileiras. Na capital federal, a situação não é calamitosa em sua totalidade, mas o sucateamento de vários espaços culturais é estarrecedor diante da pouca idade de Brasília.
Um dos locais voltados à cultura que mais precisam da atenção do governador a ser eleito em outubro é o Teatro Nacional Claudio Santoro. Fechado desde janeiro de 2014 para uma reforma em adequação com novas normas de segurança, o espaço está muito malconservado. O prédio, projetado por Oscar Niemeyer, é um dos cartões-postais de Brasília, casa da Orquestra Sinfônica da cidade e, atualmente, tem apenas seu foyer aberto ao público, para pequenas exposições e eventos.
A última apresentação da Orquestra Sinfônica no Teatro Nacional foi em dezembro de 2013, com a 9ª Sinfonia de Beethoven. Depois disso, a filarmônica tornou-se itinerante: faz concertos no Cine Brasília, no Santuário Dom Bosco, no Teatro Pedro Calmon e em outros espaços pelo DF.
Para o maestro Claudio Cohen, o novo arranjo tem seus pontos positivos. “A orquestra se aproximou de outros públicos, diferentes do que frequentava o Teatro Nacional. Mas, realmente, ficamos com esse dissabor de necessitar carregar todas as coisas [pela cidade] e não possuir sala fixa”, descreve.
Além da dificuldade de transporte dos instrumentos para onde a orquestra vai se apresentar, toda semana – dois caminhões são necessários para a operação –, o problema de não ter um lugar cativo se relaciona diretamente com o desenvolvimento de uma identidade artística do conjunto, hoje com 93 músicos.
A evolução de uma orquestra também depende do espaço onde se ensaia. Ali a gente trabalha o som, a performance dentro da acústica da sala. Se você está sempre variando [de lugar], tem uma quebra nessa construção de anos de trabalho. Perde-se o espaço de crescimento, de evolução, que é muito importante”
Claudio Cohen
Do lado de lá
Basta atravessar o Eixo Monumental para encontrar um cenário bem diferente do Teatro Nacional. O Complexo Cultural da República, que abarca a Biblioteca Nacional de Brasília e o Museu Nacional Honestino Guimarães, está bem conservado e é muito frequentado pelos brasilienses. Isso se dá, principalmente, pela proximidade dos prédios à Rodoviária do Plano Piloto.
Embora a Biblioteca Nacional seja bem munida de livros, espaçosa e sempre tenha exposições, a impressão da designer e fotógrafa Andressa Delmondes é que o brasiliense não conhece o lugar. “Muita gente nem sabe da existência disso aqui. A maioria dos frequentadores, pela minha observação, são concurseiros”, comenta a empresária, que também percebeu a presença de estudantes de escolas públicas entre os corredores de livros.
Andressa não é concurseira. A jovem se uniu a três amigas para montar uma empresa de fotografia e design, mas havia um empecilho: ela mora em Águas Claras, uma sócia vive no Gama, e as outras duas, no Jardins Mangueiral. “Encontramos um espaço maravilhoso aqui, porque é um ponto em comum a partir das nossas casas e tem tudo de que precisamos. Tem internet, tomada, é silencioso e tranquilo, e de quebra ainda pegamos livros de referência. É uma mão na roda”, define.
Com cerca de 800 visitantes em dias de semana – no sábado e no domingo, esse número dobra –, o Museu Nacional reúne um acervo respeitável: são 2.535 obras, sendo 1.165 do próprio local e 1.370 do Museu de Arte de Brasília (MAB), fechado desde 2007. Com programação educativa permanente e exposições cuja duração varia de 30 a 90 dias, o espaço é o quarto mais visitado do país.
A história da coleção da casa, aliás, é no mínimo curiosa. “Quando cheguei aqui, não tinha acervo. Fomos contemplados com o acaso da contravenção: uma apreensão judicial de um traficante que tinha muito bom gosto. Nos chamaram para ver se queríamos o material. Eram 198 obras de arte do modernismo e da arte contemporânea brasileira”, lembra Wagner Barja, diretor do local há 11 anos. Hoje, o Museu Nacional conta com obras de Di Cavalcanti, Portinari e Volpi, entre outros gigantes da arte nacional.
Questionado sobre a necessidade de investimento em cultura diante de outros assuntos, como educação, segurança e saúde, Barja não dispensa nenhuma dessas áreas de interesse, mas aponta a necessidade de se cuidar da memória.
“Uma pátria que não cultua seus símbolos é anêmica, não tem sangue nas veias. O investimento em cultura deixou de ser algo diletante, para termos uma economia criativa. É uma economia não poluente, traz a esperança de que a criatividade possa render”, defende o diretor, que também cita o valor pecuniário do acervo como fator relevante para o investimento na área.
Mário Pedrosa, um grande crítico de arte brasileiro, dizia que em tempos de crise é melhor ficar com os artistas. É uma frase emblemática para nós. A formação de um cidadão com cultura é diferente da formação de quem não tem. Vejo essa meninada entrar aqui, os garis que vieram e depois voltaram com as famílias, isso é transformação. Ou é cultura, ou é arma na cintura”
Wagner Barja, diretor do Museu Nacional Honestino Guimarães
Desolação total
Ao visualizar os cobogós desbotados entre tapumes, a artista plástica Lêda Watson encheu os olhos d’água. A primeira administradora do Museu de Arte de Brasília (MAB) não visitava o prédio desde seu fechamento, em 2007. A casa passa por obras e tem inauguração prevista para o primeiro semestre de 2019 – mesmo com as intervenções ainda em fases preliminares. “É uma emoção perturbadora ver o estado em que se encontra esse prédio”, lamenta a gravurista.
Lêda recebeu, em 1984, a missão de transformar o prédio, arquitetado pelo escritório de Niemeyer, num museu. Ela teve seis meses para montar acervo e equipe. Seis anos depois da inauguração, promoveu o Salão Nacional de Artes Plásticas, em 1991, única ocasião em que o evento veio a Brasília.
“Houve uma época, nos anos 1990, em que tínhamos várias galerias de gravura, de pintura. Os espaços proliferavam, havia uma efervescência nas artes plásticas de Brasília. O MAB funcionava, queríamos criar um jardim de esculturas nele. Estava tudo pronto, faltou verba”, lembra a artista plástica.
Para Lêda, a população brasiliense ainda não é bem atendida no quesito de acesso a arte e entretenimento. “Cultura é a essência do ser humano, aprimorada por educação, saúde, saneamento básico. Não pode ser colocada em segundo plano. Quando visitamos outros povos do mundo, o que procuramos? A cultura deles. Temos gente boa, maravilhosa, precisamos aproveitar esse potencial humano”, defende.
Fora do Plano Piloto, outro espaço carente de atenção é o Cine Itapuã, no Gama. Inaugurado em 1963, o cinema e a praça ao redor são marcos na vida de muitos moradores da cidade, que amargam o fechamento do local desde 2005. “Grandes filmes vinham para o DF e passavam primeiro aqui. É uma angústia muito grande, pois faz parte da nossa memória, da nossa história. Os gamenses sentem uma mágoa muito grande, é a cara do abandono”, define o jornalista e membro do conselho de cultura da cidade, Israel Carvalho.
O espaço, fechado por causa da proliferação de salas de cinema em shoppings, deteriora-se dia após dia. Segundo Israel, o teto está danificado, a tela tem infestação de fungos, assim como as paredes, também mofadas. Entre vidros quebrados e projetores pelo chão, poltronas puídas. “O gamense, para ir ao cinema, precisa se deslocar muito. Ou vai a Valparaíso [GO], ou a Santa Maria, Taguatinga, ou até mesmo ao Plano Piloto, que fica a 40km daqui”, descreve.
Estado amedrontado
Na Casa do Cantador, em Ceilândia, as coisas começaram a mudar 2011. À época, o prédio, de Oscar Niemeyer, estava abandonado e ocupado por moradores irregulares. Um grupo de forrozeiros, imigrantes nordestinos habitantes da cidade, conseguiu negociar a saída deles e revitalizar o espaço. Hoje, o local conta com uma diversa programação cultural e ainda tem um programa educativo: mais de 300 alunos aprendem a tocar instrumentos musicais ali.
Para o presidente da Associação dos Forrozeiros do DF, o cearense Marques Célio Rodrigues, a presença da população na Casa do Cantador é um bom sinal, mas falta investimento do governo. “A gente não consegue andar sozinho. O que fazemos está no artigo 30 da Constituição: é obrigação do gestor público investir nas culturas regionais. Não é favor para ninguém. Se o projeto é bom, tem caráter pedagógico, traz a cultura de raiz… por que não ter esse compromisso?”, questiona.
Para Marques, a resistência do Estado em investir na cultura se relaciona com a visão de parte da população sobre a classe artística. “É o grande medo dos políticos. Toda vez que se fala em [apoiar os] movimentos culturais, eles pensam ‘a saúde está mal, o povo vai me pegar’. Não! Cada setor tem sua verba, cada pasta, seu orçamento. A cultura tem a dela. Se há problema de gestão, é outra coisa. Não temos culpa disso”, reclama.
O que dizem os candidatos ao GDF
Além dos seis aparelhos citados nesta matéria, o novo secretário de Cultura deverá administrar o Cine Brasília, o Memorial dos Povos Indígenas, o Museu Vivo da Memória Candanga, a Biblioteca Pública de Brasília, o Centro Cultural Três Poderes, a Concha Acústica, o Centro de Dança do DF, o Espaço Cultural Renato Russo – reinaugurado em junho, após cinco anos sem funcionar –, o Museu do Catetinho e o Parque Audiovisual de Brasília.
Matéria portal Metrópoles
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