No que talvez tenha sido o momento mais tumultuado da sua entrevista no Jornal Nacional, na noite da última terça-feira (28), Jair Bolsonaro (PSL) mostrou às câmeras por poucos segundos um livro intitulado Aparelho sexual e cia, cuja capa traz o desenho de um menino de topete loiro olhando um tanto quanto assustado para o que tem dentro das próprias calças. Seria só mais um dos incontáveis episódios polêmicos de um candidato que tem esbravejado contra o que chama de campanha para o ensino de “ideologia de gênero” nas escolas do Brasil, não fosse um detalhe: praticamente tudo o que o candidato falou quando se referiu à publicação não encontra respaldo na realidade.
“Tomei conhecimento [em 2010] do que estava acontecendo lá [num corredor da Câmara dos Deputados]. Eles tinham acabado o nono Seminário LGBT Infantil”, disse Bolsonaro, após ter sido perguntado pela jornalista Renata Vasconcellos sobre suas manifestações prévias de caráter homofóbico. “Estavam discutindo ali, comemorando o lançamento de um material para combater a homofobia, que passou a ser conhecido como kit gay. Entre esse material estava esse livro lá. Então, o pai que tenha filho na sala agora, retira o filho da sala, para ele não ver isso aqui. Se bem que na biblioteca das escolas públicas tem”, emendou, para logo ser interrompido pelo âncora do JN William Bonner, que o lembrou que não estava permitido mostrar qualquer material gráfico durante a entrevista.
Bolsonaro deu a entender na sua declaração que o livro, de autoria do suíço Philippe Chappuis (conhecido como Zep) e da francesa Hélène Bruller, formava parte do projeto Escola sem Homofobia, que recebeu a alcunha de kit gay e que criou uma forte polêmica no primeiro mandato da ex-presidente Dilma Rousseff. Basicamente, tratava-se de um kit de apoio para a formação de professores em temas relacionados aos direitos LGBT, como o combate à violência e ao preconceito no ambiente escolar. A pressão de grupos conservadores, no entanto, fez com que a então presidente vetasse a proposta, e as peças de conscientização nunca saíram da gaveta. Logo no estreia da administração Dilma, a bancada evangélica dava uma clara demonstração de força.
Acontece que o livro em questão nunca fez parte do projeto Escola sem Homofobia. E mais: sequer foi adquirido ou fez parte de algum programa do Ministério de Educação. “Ao contrário do que afirmou erroneamente o candidato à presidência em entrevista ao Jornal Nacional na noite de 28 de agosto, ele [o livro] nunca foi comprado pelo MEC, como tampouco fez parte de nenhum suposto kit gay“, disse, em nota, a Companhia das Letras, editora que lançou Aparelho sexual e cia em 2007. O MEC confirmou a informação. O que há registrado é uma compra, por parte do Ministério da Cultura em 2011, de apenas 28 exemplares da publicação para o programa Livro Aberto. Os livros foram entregues a diferentes bibliotecas públicas do País. Segundo a pasta da Cultura, nenhum foi distribuído para escolas.
Outro ponto da resposta de Bolsonaro contestado logo após o fim da entrevista foi a menção a um suposto Seminário LGBT Infantil. Trata-se do Seminário Nacional LGBT, realizado anualmente por comissões da Câmara que atuam na defesa dos direitos dessas comunidades. De acordo com o deputado Jean Wyllys (PSOL), coordenador da Frente Parlamentar Mista pela Cidadania LGBT, Bolsonaro está se referindo ao encontro promovido em 2012. Naquele ano, a temática escolhida para o seminário foi “Sexualidade, Papéis de Gênero e Educação na Infância e na Adolescência”. Havia três eixos naquele seminário: Subjetividades e papéis de gênero (É possível falar em uma infância e adolescência gay?); Educação, sexualidade e gêneros (O que os papéis de gênero têm a ver com a prática do bullying nas escolas?); e Infância, adolescência e estado de direitos (Como estender as redes de proteção da infância e da adolescência aos meninos e meninas que fogem dos papéis de gênero?). A assessoria de Wyllys pontuou que não participaram crianças ao seminário, mas sim parlamentares, acadêmicos que estudam o tema e membros da sociedade civil. Em 2018, exemplifica Wyllys, a temática do seminário foi políticas para a população LGBT da terceira idade.
Reedição
Lançado pelo selo juvenil da Companhia das Letras, o livro mostrado por Bolsonaro está esgotado. Na nota que lançou na tarde desta quarta, a editora disse que está em contato com os donos dos direitos da obra para avaliar a possibilidade lançá-la novamente no Brasil. A Companhia das Letras afirmou ainda que o texto original foi traduzido para dez idiomas ao redor do mundo e vendeu mais de 1,5 milhão de cópias, tendo sendo transformado em exposição que ficou em cartaz em Paris. O público alvo da publicação é formado por adolescentes: no catálogo da editora, ela era sugerida para alunos de 11 a 15 anos.
A Companhia das Letras defendeu enfaticamente o título. Segundo a empresa, a publicação tem “sólida base pedagógica e rigor científico” ao abordar “todos os aspectos da sexualidade”. No comunicado, a editora diz que os autores conseguem tratar de forma “leve” assuntos importantes como paixão, mudanças da puberdade, contracepção, doenças sexualmente transmissíveis, pedofilia e incesto. “O livro conta ainda com uma seção chamada ‘Fique esperto’, que alerta os adolescentes para situações de abuso, explica o que é pedofilia — mostrando como tal ato é crime —, o que é incesto e até fornece o contato do Disque-denúncia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual contra Crianças e Adolescentes e da Secretaria Especial dos Direitos Humanos'”, explica a Companhia das Letras. “O conteúdo da obra nada tem de pornográfico, uma vez que, formar e informar as crianças sobre sexualidade com responsabilidade é, inclusive, preocupação manifestada pelo próprio Estado, por meio de sua Secretaria de Cultura do Ministério da Educação que criou, dentre os Parâmetros Curriculares Nacionais, um específico à ‘Orientação Sexual’ para crianças, jovens e adolescentes”, conclui a editora.
Matéria do site El País
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