O esquema de fraudes licitatórias nas administrações regionais de Águas Claras e do Gama, desmontado no fim de julho pela Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF), resultou em um cenário de abandono nas cidades. O Metrópoles percorreu praças de Águas Claras – onde os agentes cumpriram mandados de prisão, entre outros locais – e constatou obras malfeitas e deterioradas. Uma delas foi executada por empresa acusada de combinar preços, em conluio com outras, para vencer as concorrências.
Os lugares construídos para oferecer lazer aos moradores são alvo de críticas, principalmente devido ao descaso. A comunidade já se mobiliza para assumir obrigações das administrações regionais a fim de evitar que a situação se agrave.
“Tudo está quebrado. O chão, o parquinho. Não há manutenção. Já fiz reclamações, mas não houve resposta”, protesta a vigilante Ana Maria Cordeiro, 49 anos, moradora do Areal. A estrutura mencionada por ela, inclusive, está inutilizável.
A área do local destinado ao lazer de crianças deveria ter recebido 60m de manta geotêxtil. Esse material permeável, quando associado ao solo, drena, filtra e evita danos. Entretanto, a empresa usou apenas 20m, um terço do previsto. O resultado? Quando chove, a água se acumula próximo ao parquinho. Além disso, as rachaduras no solo oferecem risco a quem caminha por ali.
A obra foi executada pela Bracon Arquitetura e Urbanismo, uma das companhias investigadas pela Polícia Civil. A Bracon firmou contrato de R$ 293,9 mil com a administração de Águas Claras, à época chefiada por Manoel Valdeci Machado Elias, para construção de praça na QS 11 do Areal, entre os conjuntos F e J. Entretanto, não cumpriu o acordo totalmente, como apontou relatório de inspeção da Controladoria-Geral do Distrito Federal (CGDF) publicado em abril deste ano – três meses antes da operação policial.
A praça do engano
A poucos quilômetros dali, mais problemas. Moradora da Quadra 106 Norte de Águas Claras, a professora Aline Bueno, 42 anos, queixa-se do gramado da Praça Canário, em frente ao prédio onde ela vive.
“A grama é péssima, cheia de mato que atrapalha o crescimento das outras plantas, o que deixa a praça feia. A gente se sente enganada”
Aline Bueno, professora
Aline acrescenta que moradores da quadra se articulam para elaborar documento e cobrar a responsabilidade da administração pela manutenção da praça.
“É capim. Quando chove, vira um matagal. Quando cortam, deixam tudo sujo”, critica o morador de Águas Claras e advogado Marcelo Silva, 33, sobre a Praça Canário. Quem vive nos arredores do espaço se queixa da falta de poda no gramado, além de irrigação.
Até a publicação do texto, a Administração Regional de Águas Claras não havia retornado o contato para comentar as reclamações.
Empreiteira suspeita
A responsável pelo desalento dos moradores em relação à Praça Canário é a Vale Construções e Serviços Ltda. De acordo com relatório da CGDF, a empresa não cumpriu, efetivamente, 15,02% das obras. Ainda conforme o documento, a Vale deveria ter feito 3.123m² de passeio em concreto polido. Porém, executou 1.978,39m² – 63% do total previsto, pendência oculta aos olhos de quem usufrui do local.
E mais: fez o plantio de grama-batatais em mudas em vez de placas, como previa o contrato. A área vegetal, de 3.829,69m², também é menor do que o acordado (4.144m²). O mesmo problema ocorreu na Praça Estação 16, onde a empresa deixou falhas nas juntas do concreto, segundo relatório da Controladoria.
“Falta comprovação da execução dos serviços de limpeza e terraplenagem das áreas utilizadas para execução das praças, bem como divergências de quantitativos da planilha orçamentária e o projeto de arquitetura em comparação com as reais dimensões do objeto”, diz o documento. Esse trecho do relatório se refere às obras das praças Canário e Estação 16 Sul – em frente ao terminal de metrô Arniqueiras –, ambas executadas pela Vale ao preço total de R$ 592,4 mil.
A CGDF apontou também prejuízo total de R$ 117,1 mil: R$ 67,6 mil da Praça Canário e R$ 10,4 mil da Praça Estação 16. Apesar dos problemas identificados pela Controladoria, a Polícia Civil não divulgou se a Vale Construções e Serviços é alvo de investigação.
O esquema
Em 26 de julho, a Polícia Civil fez operação contra fraudes em licitações do Governo do Distrito Federal (GDF). As empresas que teriam combinado a participação em concorrências venceram contratos totalizando R$ 55 milhões. Os agentes prenderam 17 pessoas. Durante a ação, os investigadores apreenderam sete veículos de luxo e R$ 40 mil em dinheiro.
Entre os presos, está o ex-administrador de Taguatinga e empresário Márcio Hélio Guimarães e o filho dele, Márcio Hélio Guimarães Júnior.
Segundo a PCDF, os integrantes da organização concorriam em licitações de valores pequenos, por meio de carta-convite, modalidade na qual as empresas são convocadas a apresentar propostas de preço.
Ainda de acordo com a corporação, Márcio Guimarães teria criado um grupo de companhias, em nome de laranjas, para disputar certames nas administrações regionais com preços definidos pelos próprios contratados, em seleções direcionadas.
O ex-administrador de Taguatinga já havia sido alvo de investigação por participar de suposto esquema fraudulento. Em 2016, a Operação Apate, também da PCDF, apontou que mais de R$ 250 milhões foram desviados, entre 2012 e 2014, em contratos e licitações realizados em 19 administrações regionais. Antes disso, outra ação, denominada Átrio, apurou venda de alvarás de funcionamento em Taguatinga e Águas Claras.
O órgão faz auditorias desde 2011. Inspeções em obras de 16 administrações regionais estão em andamento. Além disso, a CGDF estima, até o fim deste ano, concluir vistorias em outras 15.
Segundo a Controladoria-Geral do Distrito Federal, a administração de Águas Claras atendeu às mudanças recomendadas pelo órgão no relatório. Por isso, o processo está arquivado. Apesar disso, os locais ainda dão sinais de abandono.
O Metrópoles tentou contato com a Bracon e a Vale por telefone, mas não obteve sucesso.
Problema antigo
Historicamente usados para atender interesses políticos dos mandatários do DF, os órgãos representativos de cada cidade foram transformados em cabides de emprego com fins eleitorais, para acomodação de aliados. A proposta para eleição direta de administradores chegou a ser aprovada pela Câmara Legislativa, mas não prosperou após veto do governador Rodrigo Rollemberg (PSB).
Dados do quadro de composição de preenchimento de cargos em comissão – publicados no Diário Oficial do Distrito Federal no dia 11 de julho e referentes ao mês de junho – mostram que apenas a Administração Regional do Cruzeiro cumpre o percentual mínimo estabelecido em lei, de 50% de postos comissionados ocupados por servidores efetivos.
Todas as outras regionais, para as quais nunca houve concurso, ignoram a norma, chegando a um percentual de 95,74% de ocupação por pessoas sem vínculo com o GDF.
Matéria do portal Metrópoles
Foto: Divulgação/Metrópoles