O depoimento do comando da farmacêutica Pfizer na sessão desta quinta-feira (13/5) da CPI da Covid tem o objetivo de esclarecer as circunstâncias da recusa do governo Bolsonaro à compra de vacinas da empresa, ainda em 2020, episódio que críticos afirmam ter jogado o Brasil “no fim da fila” mundial da aquisição de imunizantes contra a covid-19.
Veja também
CPI DA COVID | Chefe da Anvisa confirma pedido para alterar bula da cloroquina
O gerente-geral da Pfizer na América Latina, Carlos Murillo, será ouvido pelos senadores. Originalmente, a CPI havia convocado também a executiva Marta Díez, presidente da subsidiária da farmacêutica no Brasil, mas a empresa pediu que ela fosse dispensada porque está no Chile e “não participou das tratativas com o governo federal no ano de 2020”.
A primeira remessa de cerca de 1 milhão de doses da vacina da Pfizer/BioNTech chegou ao Brasil no final do último mês de abril. No entanto, a empresa havia iniciado tratativas com o governo muitos meses antes – o que, em teoria, poderia ter permitido o início da entrega de imunizantes no final do ano passado.
E o Brasil só começou a aplicar vacinas contra a covid-19 em 17 de janeiro, dia em que a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) concedeu autorização de uso emergencial à CoronaVac, do Instituto Butantan.
As discussões em torno da demora para adquirir vacinas foram responsáveis por alguns dos momentos mais tensos do depoimento do ex-secretário de Comunicação do governo, Fabio Wajngarten, à CPI na quarta-feira, em que ele confirmou ter se envolvido nas tratativas e confirmou a lentidão do governo em responder à Pfizer (leia mais abaixo).
Em janeiro deste ano, a Pfizer havia confirmado que o governo brasileiro rejeitara propostas feitas pela empresa feitas a partir de agosto de 2020, oferecendo a compra de um total de 70 milhões de doses que seriam entregues até o final deste ano, sendo uma parcela inicial desse montante ainda em dezembro de 2020.
Quando a recusa se tornou pública, o presidente Jair Bolsonaro e seu então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, fizeram críticas aos termos contratuais oferecidos pela empresa.
Em audiência no Senado em 11 de fevereiro, Pazuello chamou as cláusulas da Pfizer de “leoninas”, por preverem isenção de responsabilidade da farmacêutica sobre eventuais efeitos colaterais.
No mesmo contexto de rejeição aos termos da farmacêutica americana foi dita a hoje famosa frase de Bolsonaro: “Lá no contrato da Pfizer está bem claro, ‘nós não nos responsabilizamos por qualquer efeito colateral’. Se você virar jacaré, é problema seu. Se virar super-homem, se nascer barba em alguma mulher aí, ou algum homem começar a falar fino, eles não têm nada a ver com isso. E, o que é pior, mexer no sistema imunológico das pessoas”.
A Pfizer respondeu dizendo que os termos contratuais eram padronizados e foram aceitos pelos demais países do mundo que adquiriram, antes mesmo do Brasil, as vacinas da empresa.
Em 23 de janeiro, o Ministério da Saúde divulgou uma carta dizendo que o contrato com a Pfizer causaria “frustração aos brasileiros”, por envolver um montante de só 2 milhões de doses de vacina, “número considerado insuficiente para o Brasil”.
Só em março deste ano que o governo finalmente assinou o contrato com a empresa, para a compra de 100 milhões de doses, a serem entregues até o final do terceiro trimestre. Na última terça (11/5), o atual ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, afirmou que mais 100 milhões de doses desse imunizante serão compradas.
‘Inabilidade do Ministério da Saúde’
A recusa à Pfizer é “um dos casos que demonstraram inabilidade do Ministério da Saúde na condução e no planejamento da vacinação contra a covid-19”, disse na semana passada no Congresso o senador Renan Calheiros (MDB-AL), relator da CPI da Covid.
“Após as tentativas (de compra da vacina) serem praticamente paralisadas, somente em 2021 o Congresso foi informado da necessidade de modificações na legislação para que a aquisição do imunizante fosse finalmente feita. O que lamentavelmente colocou o Brasil no fim da fila da entrega do produto”, prosseguiu Calheiros.
A mudança legal a que ele se refere é uma lei aprovada em março autorizando Estados e municípios a adquirir vacinas e a assumir responsabilidade civil quanto a eventuais efeitos adversos pós-imunização.
Para o senador Otto Alencar (PSD-BA), também integrante da CPI, “ficou muito claro que o governo não tinha interesse em vacinas” no ano passado.
“No período em que a Pfizer ofereceu (a compra), eu me lembro bem, a resposta (de Pazuello) era de que não sabia que ia haver uma demanda. Ele achava que não iria haver necessidade por causa da imunidade de rebanho e porque achava que resolveria com hidroxicloroquina”, afirmou Alencar à BBC News Brasil.
O senador se refere ao medicamento defendido pelo governo que não demonstrou ter eficácia contra a covid-19 e à suposta crença do governo de que a imunidade de rebanho por contaminação – e não por vacinação – poria fim à pandemia.
Embora o Ministério da Saúde nunca tenha oficialmente adotado a estratégia de imunidade de rebanho sem vacinas, Bolsonaro disse diversas vezes que a contaminação da maioria da população era inevitável e que “ajudaria a não proliferar” a doença.
Em entrevista em 15 de março de 2020 à CNN Brasil, Bolsonaro afirmou que “muitos pegarão isso (vírus) independente (sic) dos cuidados que tomem. Isso vai acontecer mais cedo ou mais tarde”.
Em abril daquele ano, Bolsonaro afirmou que “o vírus vai atingir 70% da população, infelizmente é uma realidade”.
Essa aparente defesa da imunidade de rebanho é um dos pontos que têm sido explorados durante a CPI da Covid. Do ponto de vista científico, a imunidade de rebanho é obtida por meio de vacinação, criando-se uma proteção coletiva contra determinada doença, e não facilitando-se a contaminação – algo que, no caso da covid-19, potencialmente aumenta o número de mortes e favorece o surgimento de novas variantes do vírus.
“Claro que haveria limites aceitáveis (para se recusar a oferta da Pfizer), que poderia não haver a compra, mas houve uma concepção errada (pelo governo) de que o vírus iria embora no final do ano. Uma concepção científica errada que levou a tantas mortes e infectados. Isso precisa ser explicado e esclarecido”, disse à BBC News Brasil Otto Alencar.
Não haverá, na opinião do cientista político Creomar de Souza, um limiar claro que possa determinar na CPI, de forma técnica, se houve negligência do governo em sua recusa à compra de imunizantes – vai depender mais de haver disposição política entre ampla parcela do Congresso para encampar ou não essa tese, o que no momento não parece ser o caso.
“O grande dilema, no final, de criar prova contra o presidente do ponto de vista político, é ter políticos que topem aceitar a prova. E não existe essa recepção no Congresso hoje”, opina Souza, CEO da consultoria de risco político Dharma, à BBC News Brasil.
Ele agrega, porém, que o debate em torno das vacinas tem potencial de causar considerável desgaste ao governo, o que pode respingar nas eleições do ano que vem.
Depoimento de Fabio Wajngarten à CPI
O tema das vacinas foi amplamente levantado durante o depoimento à CPI, na quarta-feira (12/5), do ex-secretário de Comunicação Fabio Wajngarten, que em entrevista à Veja havia dito que se envolvera na compra de imunizantes – apesar de sua pasta não ter qualquer relação com a área – porque o processo estava “sofrendo entraves”. Em áudio tornado público na própria quarta-feira pela revista, Wajngarten afirmou que havia “incompetência” no Ministério da Saúde.
No depoimento, porém, Wajngarten foi vago em relação à entrevista, dizendo apenas que teve uma reunião com a Pfizer “para ajudar”. “Tentei ajudar o impasse e vi por bem levar o assunto ao presidente Jair Bolsonaro para dar uma resolução rápida”, declarou.
Ele afirmou que uma carta da farmacêutica datada de 12 de setembro, oferecendo a compra de imunizantes ao Brasil e avisando que a demanda global pelo produto estava alta, levou dois meses para ser respondida pelo governo. Além de Jair Bolsonaro, a carta era endereçada ao vice-presidente, Hamilton Mourão, aos ministros Paulo Guedes (Economia), Eduardo Pazuello (Saúde), Walter Braga Netto (Casa Civil) e ao embaixador do Brasil nos Estados Unidos, Nestor Forster.
Wajngarten disse que tomou conhecimento da carta em novembro, entrou em contato com a farmacêutica e se reuniu uma vez com o executivo Carlos Murillo, na tentativa de destravar as burocracias relacionadas à compra – burocracias que, segundo ele, são responsáveis pela demora no acesso do Brasil a vacinas.
“Vi por bem levar o assunto Pfizer ao presidente Bolsonaro na busca de uma solução rápida, e assim foi feito. Minha atitude proativa em relação ao laboratório produtor da vacina foi republicana e no sentido de ajudar. Nunca participei de negociação. O que busquei sempre foi o maior número de vacinas para atender a população brasileira com uma vacina que tinha maior eficácia”, afirmou Wajngarten.
Wajngarten declarou à CPI que, diante de cláusulas consideradas problemáticas no contrato oferecido pela Pfizer, “não houve procrastinação (na compra de vacinas) porque não havia segurança jurídica”.
Em resposta, o senador Renan Calheiros afirmou, nas primeiras horas da sessão de quarta, que o envolvimento de Wajngarten em tema desvinculado da sua área de atuação reforça os indícios de que Jair Bolsonaro teria uma “consultoria paralela” ao Ministério da Saúde para tomar decisões relacionadas à pandemia.
Nos momentos mais tensos do depoimento, senadores críticos ao governo chegaram a pedir que Wajngarten fosse preso em flagrante por considerarem que ele mentiu ou se contradisse em diversas ocasiões perante a CPI, pedido que foi rejeitado pelo presidente da comissão, senador Omar Aziz (PSD-AM).
(BBC News Brasil)
Foto: Divulgação/BBC News Brasil